sexta-feira, 26 de março de 2010

Por uma Economia Social sem ter vergonha de ser "economia"..






Porque ninguém é "profeta na sua Terra", aqui entendida como o local onde se vive e trabalha, foi em Évora (onde, por sinal nasci, mas, há muito, não é a minha terra), recentemente que fiz esta reflexão sobre a experiência dos contratos locais de desenvolvimento social (CLDS), num encontro de profissionais locais envolvidos nessa estratégia, que partilho com quem gosta do tema.

A SUSTENTABILIDADE POLÍTICA E FINANCEIRA DOS CONTRATOS LOCAIS DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL , NUM AMBIENTE DE MUDANÇA

Abel Maria Simões Ribeiro
Sociólogo; Consultor em Economia Social
abelsimoesribeiro@gmail.com


O objectivo desta reflexão é tentar ver os CLDS, como estratégia actual, á luz das mudanças que, desde meados da década de 90 do século XX, as tutelas e algumas organizações têm tentado introduzir, quer no modo como as instituições sem fins lucrativos encaram a sociedade envolvente, quer sobre a representação que esta tem sobre aquela; assim, poderemos apontar, depois, de forma aligeirada, algumas ameaças e oportunidades que esta experiência de “contratualizaçãoproporciona, assim como reflectir sobre a sua sustentabilidade política e financeira.
1. A “Estratégia de Lisboa” e o espírito dos CLDS, como verdadeira sustentação política
Em 2000, durante uma das Presidências Portuguesas da União Europeia, foi delineada a chamada “Estratégia de Lisboa”, que se consubstanciou no chamado “Triângulo de Lisboa”, com três vértices, sintetizado na afirmação sobre a Europa que se desejava : com cidadãos com cada vez mais qualificações, cada vez a dominarem melhor as novas tecnologias emergentes, cada vez socialmente mais incluídos.
Define, ainda, que as políticas (económicas, sociais, etc.) relacionadas com cada um desses vértices, devem seguir um “método aberto de coordenação”, ou seja, devem envolver, de forma transversal, na sua concepção, gestão e execução, todos os 3 sectores: lucrativo, não lucrativo, sem fins lucrativos.
Mais: essas políticas deveriam ter documentos orientadores, produzidos dentro da tal metodologia aberta, que deveriam fixar objectivos comuns e definir como cada um dos 3 sectores contribuiria.
Surgiram, então os Planos Nacionais de Acção para a Inclusão (PNAI), com duração bienal.
Mais : a ideia era que esses PNAI fossem a “Bíblia” da intervenção sobre a cidadania e inclusão e que, os PDS municipais, os planos de actividades de cada instituição plasmassem as directrizes e metas do PNAI.
E que os dinheiros públicos (nacionais e comunitários) sobretudo, fossem atribuídos a quem se inserisse, com clareza, nas directivas do PNAI.
Mais. a Estratégia de Lisboa definia que, para o período de execução dos Fundos Estruturais (vulgo QREN), deveria privilegiar a figura das Estratégias de Eficiência Colectiva (EEC), ou seja, Programas “chapéu”, cujo único objectivo seria, em torno de um território ou de uma problemática, consorciar agentes dos 3 sectores em torno de uma estratégia por eles definida, estratégia essa que seria, depois, financiada pelos chamados programas operacionais : o POPH, o POCompete, o POVT.
O CLDS, embora não tenha tido honras de EEC, foi considerado uma “estratégia” e a Portaria que o cria plasma essa vontade.
Ou seja, contratualizar, entre os actores dos 3 sectores, uma estratégia, definir as suas acções, procurar as fontes de financiamento.
Corresponde isto á realidade?
Infelizmente não. Esta lógica consorcial surgiu já APÓS estarem, no terreno, os vários Programas Operacionais.
Mas a sustentabilidade política passaria por aqui: assumir esta estrutura de hierarquia de planeamento, numa primeira análise.
2. O CLDS enquanto esperança na lógica consorcial
A estratégia CLDS é definida, na portaria que a cria, como “filha” das fragilidades detectadas nas estratégias definidas nos PNAI.
Mas, de facto, quantos de nós, que andamos na Acção Social, leram os PNAI que já existiram, os usam como linha de orientação, os referem, que seja, nas suas candidaturas ?
A estratégia CLDS é definida, na Portaria que a cria, como uma oportunidade de, em consórcio, mobilizar os recursos da comunidade para encarar, de modo organizado, os problemas do emprego e da qualificação, da intervenção familiar e parental, capacitação institucional, acesso a novas tecnologias.
Quando foi divulgado, em 2007, a estratégia CLDS foi apresentada como um modo de comprometer, verdadeiramente (daí ser um “contrato”), as instituições, em torno da abordagem dessas questões.
Falava, inclusive, em articulação e integração de acções complementares às propostas pelas instituições Coordenadoras, inclusíveis na estratégia e financiadas por outros Programas.
Tenho dúvidas que esse seja o entendimento que, em muitos locais, se faz do CLDS.
De quem será a culpa de todo este entendimento enviesado das coisas, que prejudica a dita sustentabilidade política ?
Antes de mais do discurso que as instituições sem fins lucrativos fazem de si mesma e da representação que os poderes tutelares têm das mesmas.
De que serve, de facto, falar de estratégia ou de um contrato, quando as “corporações” (CNIS, União das Misericórdias, União das Mutualidades, Cáritas Portuguesa, etc) que congregam essas instituições são as primeiras a ter um discurso e uma prática “de mão estendida” (e às vezes, de joelhos), perante as tutelas, em vez de se afirmarem como um sector de actividade (o terceiro sector, a “economia social”), que tem características próprias, mas que tem um peso real na sociedade e é tão digno como os outros? De que serve falar de planear, articular e integrar acções, quando a lógica das instituições é “cada uma por si” e “pedir” o mais possível, como “esmola” ? O que dizer do eterno discurso de que “substituímos o Estado nas sua obrigações”, quando deveriam ter orgulho em dizer que fazem o que o Estado e o Mercado também fazem, mas numa perspectiva democrática, solidária, de participação, logo, economicamente mais concorrencial, porque mais barata ?
Mas, as tutelas também não são inocentes.
3 . Detenhamos-nos na sustentabilidade financeira
A primeira grande “traição” das tutelas foi não respeitar, na articulação dos fundos estruturais, o tal princípio dos “programas chapéu”. Mais uma vez, IEFP, ISSS, CCDR, ficaram cada um como o seu “queijo”, não partilhando o modo como o distribuir.
Existem exemplos um pouco chocantes, mesmo relacionados com os CLDS, que me escuso de referir. Menciono, só, o facto, por exemplo, da gestão do POPH (mas podia ser do ESCOLHAS) não estar a minimamente, valorizar os projectos apresentados, que mencionam ser complementares á estratégia do CLDS. Mais, os técnicos que fazem a análise vislumbram sobre-financiamentos onde nem sequer existem !
Contudo, continuo a defender que os CLDS são uma oportunidade única de “reabilitação” da Economia Social. Desde que quem se assumam como tal.
Desde que o promotor (Câmara) se assuma com tal e, nomeadamente, através da Rede Social, motive e mobilize parceiros e respeite a autonomia da (s) entidade (s) Coordenadora (s).
Depois, urge que a(s) entidade(s) Coordenadora(s) percebam que têm em mãos, como o CLDS, uma estratégia, e não mais um simples e meritório “projecto” ….
O “tipo ideal” (vénia ao velho Pai da Sociologia Max Weber) de CLDS seria, por exemplo, aquele onde as entidades Coordenadoras, em articulação com a entidade promotora, mormente a Rede Social, conseguem que as entidades da economia social comecem a ligar importância ao Plano de Desenvolvimento Social, “inscrevam” nele os seus planos de actividades e, sobretudo, articulem as acções entre si, rentabilizando recursos. Eis um “contrato” real.
Depois, estabelecer o “espírito” do contrato a todos os outros sectores, incluindo aos serviços públicos”: porque andamos quase todos a fazer o mesmo, ou seja, exemplificando, atender utentes que, ciclicamente, e repetidamente, expõem os mesmos assuntos à Caritas, ao NLI do RSI, ao Centro de Emprego, etc? Porque não “contratualizar”, entre todos os intervenientes, públicos e solidários, uma economia de esforços, criando figuras novas, tiradas de outros ambientes, como o “Gestor do Utente”, único que o atende e encaminha ou, mesmo, acompanha, mas que fica como sua referência para ser contactado por todos os serviços envolvidos e responde pelo seu utente?
E “contratualizar”, com os privados, os tais que não têm medo de dizer que buscam o lucro ou que precisam de ganhar dinheiro, serviços que eles prestam melhores do que nós, mas em ambiente consorcial, ou seja, para o vasto conjunto dos outorgantes do vasto “contrato” (assessoria jurídica, contabilística, na procura de fontes de financiamento? Não haverá jovens licenciados, desempregados qualificados, disponíveis para desafios deste tipo, recorrendo, por exemplo, ás políticas de emprego tipo “Emprego 2010”) ?
Os Contrato Locais de Desenvolvimento Social constituem uma esperança nesta nova filosofia de planeamento estratégico.
A Caritas Arquidiocesana de Évora, pelo seu vasto território, pode fazer do CLDS (que não o abarca todo) uma experiência piloto da contratualização, mais global, que, pode fazer com a autoridade moral que tem, com todas as instituições sociais que tutela e, depois, com toda a sociedade envolvente.

Assim o consiga. Não tenho dúvidas que, adaptando o que diz uma das figuras míticas deste tempo, “Yes, you can !”.

Évora, 23 de Março de 2010

sexta-feira, 19 de março de 2010

Porque há um "Dia do Pai" e um PAI para esse dia..



Sou do tempo em que, na Igreja, comprávamos pagelas para dar ao nosso Pai, neste dia, que, de sua origem, se chama de "S. José Operário".
Hoje quero homenagear, neste blog, que, repito, é um diário pessoal que partilho com quem o quer ler, o meu Pai.

Quero homenagear o cidadão Abel Martins Travessa Ribeiro, nascido em 1920, filho de um Alfaiate e de uma Costureira, que, durante muitos anos, viu, na sua certidão de nascimento, figurar como "Filho de pai incógnito", até que, por fim, quando o meu Avô pode casar de novo, passou a ser filho legítimo.

Quero homenageá-lo, porque, em 1939, com 19 anos, após ter sido brilhante aluno do Liceu de Évora, foi, sem meios alguns, estudar para Lisboa, em "Económicas", onde, só conclui o primeiro ano, mas de onde trouxe, na memória, a paixão pela Matemática pura, que aprendeu com o Doutor Bento de Jesus Caraça, ilustre anti-fascista e grande promotor da educação popular, mormente através dos livros da editora "Cosmos", que o meu Pai coleccionou.
Só conclui o 1º ano por uma razão simples : falta de dinheiro. Tinha um dilema diário : as aulas eram no centro de Lisboa e ele estava hospedado na Amadora, em casa de um Tio e das duas uma, ou gastava dinheiro no eléctrico e ia para a Amadora, ou comprava uma banana, uma sandes de queijo e almoçava.
Nesse ano, começou a 2ª Guerra Mundial e o jovem Abel Martins Ribeiro volta a casa, pois com racionamentos, um Pai doente e já pouco capaz de trabalhar, tinha de apoiar a família. Mas veio de "Económicas", com o 1º ano concluído, com 18 valores de média.

Quero homenageá-lo, por ter assumido, aos 20 anos, os encargos da casa paterna, trabalhando, de dia, no Ourivesaria e Relojoaria do seu futuro sogro e, à noite, ter iniciado a sua carreira docente, na Escola Industrial e Comercial de Évora, dando aulas no Cursos de Comércio.

Quero homenageá-lo, por ter namorado a minha Mãe, à moda antiga ("à janela"), durante 12 anos (ela era, no fundo, de "boas famílias" e ele o filho de um Alfaiate, ainda por cima republicano antigo...)e, quando casou, a ter tratado como uma princesa, para que nada lhe faltasse, trabalhando de dia e de noite.

Quero homenageá-lo, nesse labor que começava, de manhã, na Escola Comercial e Industrial, continuava, de tarde, no Seminário de Évora e Escola de Enfermagem, continuava com "explicações" em casa e acabava com aulas, nocturnas, na mesma Escola. Só que as aulas no Seminário eram gratuitas, pois ele, o meu Pai, era Católico militante e assumia que tinha de dar esse contributo á Igreja. E quantas vezes levou, ao fim de semana (para grande pânico da minha Mãe),sem aviso, seminaristas a almoçar lá em Casa, a que se seguiam idas, com eles (e comigo e com o meu irmão), ao Futebol, a ver o Lusitano de Évora, nos seus tempos brilhantes de 1.ª Divisão.

Quero homenageá-lo, porque, em 1969, com 49 anos, concluiu, finalmente, , estudando á noite, a sua Licenciatura em Economia, com 18 valores, mantendo (porque economicamente era preciso, tinha 4 filhos), todos os trabalhos que tinha. E durante o Curso, foi monitor de vários docentes. E foi convidado a fazer um Doutoramento em Espanha, mas não foi, pois não se via privado da família.

Quero homenageá-lo porque, mesmo com parcos recurso económicos, arranjou sempre maneira de, nas férias (e isso durou até aos meus 17 anos), nos mostrar, em viagens pelo País, com a sua sabedoria universalista, quase tudo o que havia, com interesse patrimonial, em Portugal. Graças a ele conheço Portugal Continental inteiro e a suas riquezas patrimoniais e etnográfica : com o meu Pai, tanto comia em restaurantes "de luxo" como em tabernas, pois, dizia ele, a educação que temos adapta-se a qualquer local, com dignidade.

Quero homenageá-lo, por ter sabido dizer não aos "poderes" que o foram querendo seduzir, mesmo com prejuízo da sua vida familiar : recusou ser "capataz" de uma Cooperativa de Latifundiários em Coruche, porque dizia, fora contratado para Administrador e não para despedir pessoas (isto em 1971); sendo Director de uma Escola (em 1973) e tendo recebido um Cartão de Membro da Acção Nacional Popular (partido único do tempo Marcelista), o devolve, dizendo que não tinha assinado nenhum proposta para se associar...; e isso nesse tempo significava riscos.

Quero homenagear o Homem que sempre se deu à comunidade, foi dirigente associativo, venerado pelos seus antigos alunos e explicandos, que encontrava pelo País todo, a quem chamava, sempre, "filhos" .

Quero homenagear um Cidadão que sempre se afirmou de "Direita", era o militante nº 3 da Secção de Évora do PSD,mas recusou ser candidato á Câmara de Évora, por reconhecer no seu Colega de Curso, Dr. Abílio Fernandes, do PCP, melhores qualidades para Autarca.
Recordo esse Homem conservador, mas de espírito político aberto, que, pela primeira e única vez, na vida, foi a uma iniciativa do PCP, quando eu fui candidato a Vereador para a Câmara de Arruda dos Vinhos e fui eleito.

Quero homenagear um Católico militante, mas que não teve dúvidas em perceber que o filho se ia divorciar e em acolher a futura esposa dele, com uma grandiosidade de alma que só os espíritos livres conseguem ter.

Quero homenagear um Homem sem preconceitos, mas com valores, que esteve comigo nos dias em que nasceram os meus filhos, que eu apoiei, também, nos maus períodos da sua vida, apoio retribuído e centuplicado, logo de seguida; que não me deixou herança alguma material (ele queria lá saber disso...), de hábitos "espartanos" (não se bebia às refeições, mas só em dias de festa), com quem eu vi Portugal ser 3º no Campeonato do Mundo de Futebol de 1966, com quem vi o o primeiro ser humano chegar à Lua...

Enfim, homenagear um Pai de quem, estranhamente, confesso não ter saudades : ele é uma presença diária, na minha vida.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Saber sair a tempo, com dignidade...



Entrei para o PS, como militante, em Novembro de 2008 e pedi ao Presidente da Comissão Política Concelhia, Dr. Artur Melo e Castro, que subscrevesse a minha ficha de adesão.

Isto porque se vivia aqui, no Marco de Canaveses, um momento de turbulência onde, acreditei, alguém, do exterior, pretendia impor um candidato á Câmara, que não aquele que a Concelhia havia escolhido.

Estive com Arur Melo, contribuindo para a pré-campanha, não só apoiando (nunca fui "corifeu" nem "amanuense"), mas criticando, sempre, junto do próprio (existem mails que o demonstram) e, porque penso que no PS as "paredes" têm mesmo de ser de "vidro", também nos blogs onde escrevia.

Afastei-me quando a Candidatura se sobrepôs, na minha opinião, ao Partido e começou o "efeito eucalipto" : secar tudo á volta, afastar ou levar aos afastamento de quem não se revia no líder ou pedia mais PS e menos Artur Melo. Escrevi, na altura sobre isso e foi essa a análise, que repeti(está neste blog) do resultado eleitoral, em documento que facultei em Plenário de Militantes.


Ontem, Artur Melo voltou a estar ao nível da pessoa (ele mesmo) que me "arrebatou" para o PS : soube ter a republicana dignidade de se afastar, do cargo de Presidente da Comissão Política Concelhia, no momento que julgou certo e fê-lo com a postura honrosa a que a sua educação o obrigava.

Não confundo pessoas com ideias.

Discordei, politicamente, das posições de Artur Melo e critiquei as mesmas.

Contudo, não combato nem ataco pessoas, mas sim as ideias e as posturas políticas que originam. A não ser que as pessoas sejam de baixo carácter ou mal formadas moralmente, o que não é o caso. Mas é o de outros, que conheci no trajecto.


Hoje, elogio o meu Camarada Artur Melo por ter sabido sair. Com honra e dignidade.

Por isso o fui cumprimentar, quando comunicou a sua saída.
Porque, entre Camaradas que sabem o VERDADEIRO significado desse termo, não há ressentimentos.

De resto, é conhecida a minha posição, nas eleições para os órgãos locais do PS, que, também, difere dos militantes que apoiaram Artur Melo.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Sobre o Poder, o Bem e o Mal, a "tentação" e a sua "diabolização"


Eis uma reflexão útil, sobre a raiz do Poder e do seu uso. E de quem o sacraliza. Para se perceber que, durante séculos, confundiu-se "tentação" com sexo e nunca com aquilo que, verdadeiramente significava : querer PODER, ou seja, ser um "Deus" perante os outros, logo, dispôr da sua vida.


Citação de um texto de um Teólogo, cronista do DN e JN, publicada nesses jornais, muito a propósito em tempo de futura Páscoa (que é, ao que ainda julgo saber, é tempo de Resurreição, não de, sómente, Morte)....






O DIABO DO PODER
por ANSELMO BORGES
(Docente da Universidade Católica)

Quando se reflecte sobre o mal, o que mais impressiona é o mal moral: porque é que a liberdade não é sempre boa? Porque não fazemos sempre o bem?
Estas perguntas são de tal modo dramáticas que, para explicar o bem e o mal no mundo, muitas vezes se recorreu a um duplo Princípio: um Princípio do Bem e um Princípio do mal. No contexto do cristianismo, que, por sua vez, bebeu noutras fontes religiosas mais antigas, o diabo apareceu como "solução" para o enigma. Ele seria o Tentador e o ser humano nem sempre resiste à tentação.
Neste contexto, é preciso dizer, em primeiro lugar, que o Credo cristão não fala do diabo. O cristão não acredita no diabo, mas em Deus. Quanto ao diabo tentador, seria necessário perguntar quem tentou o diabo para, de anjo bom, se tornar anjo mau, precipitado no inferno e tentador dos homens. Lembro que já Kant fez notar que um catequizando iroquês perguntou ao missionário: porque é que Deus não acabou com o diabo? Quanto às tentações, não é preciso diabo nenhum. Bastamos nós. O Homem, entre a finitude e o Infinito, está inevitavelmente sujeito à falibilidade e à queda.
Tentação vem do latim temptare, que, para lá de ensaiar, experimentar, tentar, também quer dizer atacar, procurar seduzir e corromper, pôr à prova.
Neste quadro, a tentação maior é a do poder, não enquanto serviço, mas enquanto domínio, vanglória e exaltação do eu. Pela sua própria dinâmica, o poder tende a ser total. E porquê? Porque a ilusão da omnipotência dá a ilusão da imortalidade, de dominar, vencer e matar a morte. Omnipotentes, seríamos imortais.
Quem quiser uma prova de que a tentação maior é a do poder - financeiro, económico, político... - olhe para o palco da presente situação nacional.
A Igreja, na liturgia, muda os textos, segundo os anos. Mas, no primeiro Domingo da Quaresma, a seguir ao Carnaval, lê-se sempre o Evangelho que refere as tentações de Cristo. São três e, contra a impressão que a Igreja acabou por dar - as tentações seriam sobretudo as do sexo -, são todas relativas ao poder.
O diabo não existe, não se justificando, portanto, os exorcismos. Ali, nas tentações de Cristo, também não há diabo nenhum. O diabo não apareceu a Jesus. Todo aquele excepcional passo do Evangelho é uma encenação dramática que personifica na figura do diabo a vivência da luta de Jesus em ordem à sua decisão: há-de ser um messias do poder ou o messias do serviço? O que ali se determina é se a sua mensagem é a divinização do Homem ou a humanização de Deus. Afinal, a boa nova do Evangelho é que Deus não está interessado nele mesmo nem no culto que lhe possamos prestar, mas exclusivamente no bem-estar e realização dos seres humanos, na plena humanização de todos.
Nenhum exegeta viu tão fundo neste passo como Dostoievski em Os Irmãos Karamazov. Ivan conta a Lenda do Grande Inquisidor. Jesus aparece em Sevilha, no dia a seguir à queima de quase uma centena de hereges. A multidão reconhece-o e segue-o, mas o cardeal inquisidor manda prendê-lo. Na prisão, diz-lhe que ele não entendeu os homens, ao querer a liberdade para eles. Foi por isso que não cedeu às tentações do milagre: transformar as pedras em pães, deitar-se abaixo do pináculo do Templo. Mas os homens não suportam o fardo da liberdade. Assim, a Igreja corrigiu a sua façanha, baseando-a em milagre e poder. "E as pessoas ficaram contentes por serem de novo guiadas como um rebanho e por ter sido tirada dos seus corações a dádiva mais terrível que tanto sofrimento lhes causava: a liberdade." "Vai-te embora e não voltes mais... não voltes... nunca, nunca!"
A tentação maior da Igreja é a do poder: poder social e político, controlo das consciências, imposição das suas normas aos não crentes, aceitação de uma religiosidade mágica e milagreira...
"A última tentação de Cristo", na cruz, não foi, como sugeriu M. Scorsese, casar com Maria Madalena, mas descer da cruz. Não cedeu. Deus não livra da finitude nem, consequentemente, da morte ".